domingo, 31 de maio de 2020

Então, estamos quites.



Logo no início da pandemia, eu estava na farmácia com meu filho. Do meu lado, uma família: mãe, filha adolescente e irmão mais novo. Acho que o menino tinha uns 9 anos. Ele, com voz alta e gestos rápidos, tentava convencer a mãe a comprar um máscara para ele. A mãe distraída não ouviu o apelo. Ele pegou a máscara que estava no balcão, e colocou na cesta de produtos que a irmã carregava. A mãe tirou a máscara e disse algo que não pude ouvir. Foram para o caixa. Eu fiquei olhando a cena, podia ouvir a respiração ofegante do menino, queria ajudar. Vi que ele estava com medo, eu também estava. Mas não consegui fazer nada.
Tenho uma caixa do livro Dicionário Ilustrado de Sentimentos no carro, quis correr para pegar um livro e dar para ele, talvez o ajudasse a entender o que estava sentindo. Talvez ajudasse a mãe a ajudar o menino. Mas não tive coragem desse gesto. Fiquei com receio da reação da mãe. Não deveria, mas fiquei e me arrependo. Penso sempre nesse menino, e torço para que ele esteja bem.
Sim, ando reflexiva. Mas acho que isso não é algo que só ocorre comigo. Talvez o mundo esteja refletindo. Acredito de verdade que o mundo está mudando para melhor. Que a adversidade está ensinando um novo modo de ser e agir. Acredito porque sou otimista. Mas acho que acredito nisso também porque comigo está sendo assim. E temos essa mania estranha de achar que o que acontece com a gente pode estar acontecendo com o outro.  Será?
Na tentativa de assistir alguma live essa semana – como assim que vou passar a quarentena sem assistir uma live ou fazer um curso? – consegui navegar por várias, nessa frenética tentativa de ver tudo, sem realmente ver nada. Mas uma vontade ficou ao ver o que as pessoas estão fazendo: preciso oferecer o meu melhor para o Mundo.  E se não bastasse a vontade, tem aquela voz que fala comigo quando medito. Sim, ouço vozes. Já que estamos aqui fazendo confissões.
A voz diz muitas coisas. Na verdade é uma voz que conhece pouco a palavra silêncio. Ela diz que posso ajudar as crianças. Ela diz que devo ajudar. Ela fala sobre sentimentos. E, sobretudo me manda falar sobre sentimentos com as crianças.  
E acho que desde a cena da farmácia estou gestando esse projeto que a voz insiste em me lembrar. Pelo menino da farmácia e por tantos meninos e meninas que precisam entender o que estão sentindo. Assim posso tentar dar o meu melhor, sou das palavras e são palavras que tenho para dar.
Ontem dei o primeiro passo concreto em direção a isso. É assim que um caminho se faz não é? Passo a passo.
Então, voz, estamos quites?

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